sábado, 18 de outubro de 2008

Dicionário do pensamento marxista - Tom Bottomore - TOTALIDADE

Dicionário do pensamento marxista - Tom Bottomore

Totalidade
Em contraste com as concepções metafísica e formalista, que a tratam como totalidade abstrata, intemporal e, portanto, inerte – na qual as partes ocupam uma posição fixa num todo inalterável -, o conceito dialético de totalidade é dinâmico, refletindo as mediações e transformações abrangentes, mas historicamente mutáveis, da realidade objetiva. Como disse Luckács:

A concepção dialético-materialista da totalidade significa, primeiro, a unidade concreta de contradições que interagem (...); segundo, a relatividade sistemática de toda a totalidade tanto no sentido ascendente quanto no descendente (o que significa que toda a totalidade é feita de totalidades a ela subordinadas e também que a totalidade em questão é, ao mesmo tempo, sobredeterminada por totalidades de complexidade superior...) e, terceiro, a relatividade histórica de toda totalidade, ou seja, que o caráter de totalidade de toda totalidade é mutável, desintegrável e limitado a um período histórico concreto e determinado. (Luckács, 1948: 12).

Na filosofia de Hegel, o conceito de totalidade tem importância central. Como “totalidade concreta”, com suas diferenciações internas, ela constitui o início do progresso e do desenvolvimento (Hegel, 1812, Vol. II; 1929: 472). O resultado do desenvolvimento é o “todo idêntico a si mesmo” (1920: 480) que recobre a imediatez original na forma de “determinação transcendente”, através do “sistema de totalidade” (1929: 482). Portanto,

a pura imediatez do Ser, na qual a princípio toda determinação parece ter sido extinta ou omitida pela abstração, é a Idéia que alcançou sua auto-igualdade adequada através da mediação – isto é, através da transcendência da mediação. O método é o Conceito puro, que só se relaciona consigo mesmo; é portanto, a simples auto-relação que é o Ser. Mas agora é também o ser realizado, o Conceito auto-abrangente, o Ser como totalidade concreta e também plenamente intensiva. (Hegel, 1929: 485).

Assim, o conceito hegeliano de totalidade é ao mesmo tempo o núcleo organizador do método dialético e o critério de verdade. Este último aspecto é vigorosamente ressaltado por Lênin quando este, em 1916, elogia Hegel nos termos seguintes:

A totalidade de todos os aspectos do fenômeno, da realidade e de suas relações recíprocas – isto é, daquilo que a verdade é composta. As relações (=transição = contradições) de noções = conteúdo principal da lógica, pelas quais esses conceitos (e suas relações, transições e contradições) são mostrados como reflexos do mundo objetivo. A dialética das coisas produz a dialética das idéias, e não o inverso. Hegel percebeu de forma brilhante a dialética das coisas (fenômenos, o mundo, a natureza) na dialética dos conceitos. (Lênin, 1961: 196).

A totalidade social na teoria marxista é um complexo geral estruturado e historicamente determinado. Existe nas e através das mediações e transições múltiplas pelas quais suas partes específicas ou complexas – isto é, as totalidades parciais – estão relacionadas entre si, numa série de interrelações e determinações recíprocas que variam constantemente e se modificam. A significação e os limites de uma ação, medida, realização, lei, etc., não podem, portanto, ser avaliados, exceto em relação à apreensão dialética da estrutura da totalidade. Isso, por sua vez, implica necessariamente na compreensão dialética das mediações concretas múltiplas que constituem a estrutura de determinada totalidade social.
A concepção que Marx possuía do Materialismo Histórico teoriza o desenvolvimento social a partir do ponto de vista totalizante de uma “história mundial” que surge das determinações objetivas dos processos materiais e interpessoais. A estrutura social e o Estado evoluem constantemente a partir do processo vital de indivíduos definidos (A Ideologia Alemã, vol.I, IA), mesmo que a objetividade alienada e reificada possa surgir como totalmente independente deles. O ponto de vista abrangente é em si um produto sócio-histórico. “A anatomia humana encerra a chave da anatomia do macaco. As sugestões de um desenvolvimento superior entre as espécies animais subordinadas só podem ser compreendidas depois de conhecido o desenvolvimento superior. A economia burguesa nos proporciona, portanto, a chave da antiga, etc.” (Grundrisse, Introdução). Assim, a história do mundo só é decifrável quando suas ligações totalizantes surgem objetivamente das condições do desenvolvimento e da concorrência capitalistas que “produziram a história do mundo pela primeira vez, na medida em que fizeram todas as nações civilizadas e todos os membros individuais dessas nações dependerem, para a satisfação de seus desejos, , de todo o mundo, destruindo com isso a exclusividade natural anterior nas nações individualizadas” (A Ideologia Alemã, vol. I, IB, 1). Assim sendo,

as coisas chegaram agora a um ponto tal que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade das forças produtivas existentes não só para concretizar sua auto-atividade, mas também meramente para salvaguardar sua própria existência. Essa apropriação é determinada, em primeiro lugar, pelo objeto a ser apropriado, as forças produtivas, que foram desenvolvidas em uma totalidade e que só existem dentro de um intercâmbio universal(...). A apropriação dessas forças é, em si, apenas o desenvolvimento das capacidades individuais que correspondem aos instrumentos materiais da produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, por essa mesma razão, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades dos próprios indivíduos. Essa apropriação é ainda determinada pelas pessoas que se apropriam. Só os proletários de hoje (...) estão em condições de realizar uma auto-atividade completa e não mais restrita, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento de uma totalidade de capacidades a ela vinculadas.” (Ibidem, IB,3).

De um modo que lembra o trecho acima, Lukács (1971: 28) argumenta que “a totalidade do objeto pode ser postulada apenas quando o sujeito postulante é em si uma totalidade”. E, ao criticar o “ponto de vista individual” da teoria burguesa, insiste que “não é o predomínio dos motivos econômicos na interpretação da sociedade que constitui a diferença decisiva entre o marxismo e a ciência burguesa, mas sim o ponto de vista da totalidade. A categoria de totalidade, a dominação geral e determinante do todo sobre as partes é a essência do método que Marx assumiu a partir de Hegel e, de maneira original, transformou na base de uma ciência totalmente nova” (1971: 27). Lukács desenvolveu uma teoria muito influente da Ideologia e da Consciência de Classe, centralizada em torno do “ponto de vista da totalidade”. Mais tarde, esse princípio metodológico lukacsiano foi transformado por Karl Mannheim, que postula a entidade sociológica dos “intelectuais descompromissados” (freishwebendes Intelligenz), com uma “necessidade de orientação total e síntese”. Graças ao pretenso fato de que eles “reúnem em si todos os interesses de que está impregnada a vida social (...) os intelectuais ainda são capazes de chegar a uma orientação total, mesmo quando ingressam num partido”.(Mannheim, 1936: 140-143).
O Capital de Marx culmina com o Volume III: “O Processo de Produção Capitalista como um Todo”. Só em termos da necessária interrelação estrutural entre o capital social total e a totalidade do trabalho é que as tendências e leis da auto-expansão e da desintegração final do capital, tal como reveladas por Marx, adquirem significação real, ao mesmo tempo em que também levam plenamente em conta as tendências contrárias e as determinações estruturais que tendem a deslocar as contradições do capital e, dessa forma, a prolongar o período de sua viabilidade social e histórica. Em uma época histórica posterior das confrontações sociais, Lênin preocupou-se em especial com a identificação da alavanca objetiva, ou do estratégico “elo da cadeia”, historicamente específico e necessariamente variável (Lênin, 1922), por meio do qual uma totalidade social dada é controlada de maneira mais efetiva sob forma de ação social/política organizada, desde que uma agência coletiva, adequada e consciente, exista para implementar a concepção estratégica global.
Ao contrário, em Sartre, a “totalidade” é um conceito problemático, já que a totalização em si é invariavelmente uma aventura individual.

É importante compreender que aquilo de que tratamos aqui não é uma totalidade, mas uma totalização, isto é, uma multiplicidade que se totaliza a si mesma a fim de totalizar o campo prático a partir de determinada perspectiva, e que sua ação comum, por meio de cada práxis orgânica, é revelada a todo indivíduo comum como uma objetivação em desenvolvimento. (Sartre, 1976: 492).

Tendo em vista essas determinações, a própria “estrutura” não pode ser outra senão uma inércia adotada, e o “todo” é essencialmente uma questão de interiorização, pois a
estrutura é uma relação específica dos termos de uma relação recíproca com o todo e entre si através da mediação do todo. E o todo, como a totalização em desenvolvimento, existe em cada um na forma de uma unidade da multiplicidade interiorizada e em nenhum outro lugar. (Sartre, 1976: 499).

Um comentário:

Israel Figueira disse...

Olá Sônia, em primeiro lugar gostaria de dizer que gostei do seu blog e da maneira como você se apresenta. Muito pertinente.

Eu achei o seu blog ao pesquisar sobre a categoria da totalidade na obra marxiana, e considero essa categoria juntamente com a ontologia, as formulações mais importantes para o avanço do pensamento marxista no séc. XXI. Considero que elas são as categorias de análise do ser social que nos permitirão obter uma sociedade mai humana e justa.
Parabéns. Gostaria de saber se ainda é doutoranda e qual a sua linha de trabalho.
Abraços.
Israel Figueira