terça-feira, 10 de abril de 2012

O Ornitorrinco

O Ornitorrinco
Extraído do livro: "Crítica a razão dualista - O
Ornitorrinco" - Boitempo Editorial, 2003)
Ornitorrinco – s.m.(Do gr.
ornis, ornithos. Ave + Rhynkhos. bico.)
Ornithorhynchus anatinus.

Mamífero
monotremo, da subclasse dos prototérios, adaptado à vida aquática. Alcança 40cm
de comprimento, tem bico córneo, semelhante ao bico de pato, pés espalmados,
rabo chato. É ovíparo. Ocorre na Austrália e na Tasmânia. (Família dos
ornitorrinquídeos).
Encicl. O ornitorrinco vive em lagos e rios, nas margem dos quais escava tocas
que se abrem dentro d‘água. Os filhotes alimentam-se lambendo o leite que
escorre nos pêlos peitorais da mãe, pois esta não apresenta mamas. O macho tem
um esporão venenoso nas patas posteriores. Este animal conserva certas
características reptilianas, principalmente uma homeotermia imperfeita.
Grande
enciclopédia Larousse Cultural. vol.18, Ofa-Per, São Paulo, Nova Cultural,
1998.
De Darwin a Prebisch/Furtado
A teoria do subdesenvolvimento, única elaboração original
alternativa à teoria do crescimento de origem clássica, Smith e Ricardo,
não é, decididamente, uma teoria evolucionista. Sabe-se que o evolucionismo
influiu praticamente em todos os campos científicos, inclusive em Marx, que
nutria grande admiração pelo cientista inglês que moldou um dos mais
importantes paradigmas científicos de todos os tempos, cuja predominância hoje
é quase absoluta. Mas tanto Marx quanto os teóricos do subdesenvolvimento não
eram evolucionistas. O primeiro porque sua teoria trabalha com rupturas, com a
tríade tese-antítese-síntese, e o motor da história são os interesses concretos
das classes, vale dizer a consciência, mesmo imperfeita, dos sujeitos
constitutivos: “os homens fazem a história...” O evolucionismo não comporta
* Foi na defesa de tese de doutoramento de Caico, amigão dos tempos sombrios,
conhecido socialmente como Carlos Eduardo Fernandez da Silveira, de cuja banca
honrosamente fazia parte no Instituto de Economia da Universidade de Campinas
em 19/out/2001 que, de repente, deu-me um estalo: a sociedade e economia que
ele descrevia, em seus impasses e combinações esdrúxulas, só podia ser um
ornitorrinco.Devo-lhe mais essa, Caicão.
“consciência”, mas uma seleção natural pela eliminação dos menos
aptos,dentro do acaso.Já os cepalinos foram influenciados por Weber – e nas
margens também por Marx – cujo paradigma é o da singularidade, que não é uma seleção
mas uma ação com sentido: não se cogita, weberianamente, de uma “finalidade”
que no evolucionismo aparece como sendo a da reprodução da espécie. O
subdesenvolvimento assim, não se inscrevia numa cadeia de evolução que começava
no mundo primitivo até alcançar, através de estágios sucessivos, o pleno
desenvolvimento. Antes, tratou-se de uma singularidade histórica, a forma do
desenvolvimento capitalista nas ex-colônias transformadas em periferia, cuja
função histórica esteve em fornecer elementos para a acumulação de capital no
centro. Essa relação, que permaneceu apesar de intensas transformações, a
impediu, precisamente de “evoluir” para estágios superiores da acumulação
capitalista, vale dizer, para igualar-se ao centro dinâmico, conquanto lhe injetou
reiteradamente elementos de atualização. O marxismo, dispondo do mais
formidável arsenal de crítica à economia clássica, tem uma teoria do
desenvolvimento capitalista na própria teoria da acumulação de capital, mas
falhou em especificar-lhe as formas históricas concretas, sobretudo em relação
à periferia. Quando o tentou, obteve alguns dos grandes resultados de caráter
mais geral, com a "via prussiana” e a “revolução passiva”.Mas por muito
tempo, um “evolucionismo” marxista esteve em larga voga, o que resultou numa
raquítica teoria sobre a periferia capitalista, dentro das etapas de Stálin, do
comunismo primitivo pré-classes ao comunismo pós-classes.No caso
latino-americano esse etapismo levou a equívocos de estratégia política, e a
teoria do subdesenvolvimento era considerada “reformista” e aliada do
imperialismo norte-americano.
O subdesenvolvimento poderia se inscrever como um caso da “revolução passiva”,
que é a opção interpretativa de Carlos Nelson Coutinho e Luis Jorge Werneck
Vianna , mas de qualquer modo falta-lhes, para se igualar à teorização do
subdesenvolvimento, as específicas condições latino-americanas, vale dizer, o
estatuto de ex-colônias, que lhe dá especificidade política, e o estatuto
rebaixado da questão da força de trabalho, escravismo e “encomiendas”, que lhe
confere especificidade social . Florestan Fernandes aproximou-se de uma
interpretação na mesma linha em A Revolução Burguesa no Brasil, mas deve-se
reconhecer sua dívida para com a originalidade cepalina-furtadiana.Todos, de alguma
forma, incluindo-se Furtado, são devedores, na interpretação do Brasil, dos
clássicos dos anos trinta, que se esmeraram em marcar a originalidade da
colônia, da sociabilidade forjada pela summa da herança ibérica com as
condições da exploração colonial fundada no escravismo.
Como singularidade e não elo na cadeia do desenvolvimento, e pela
“consciência”, o subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução truncada
, mas uma produção da dependência pela conjunção de lugar na divisão
internacional do trabalho capitalista e articulação dos interesses internos.
Por isso mesmo, havia uma abertura a partir da luta interna das classes,
articulada com uma mudança na divisão internacional do trabalho capitalista.
Algo que, no Brasil, ganhou contornos desde a Revolução de 1930 e adquiriu
consistência com a chamada industrialização por substituição de
importações.Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil, fornece a chave
dessa conjunção: crise mundial de Trinta e revolução interna, uma espécie de 18
de Brumário brasileiro, em que a industrialização surge como projeto de
dominação por outras formas da divisão social do trabalho, mesmo às custas do
derrocamento da burguesia cafeicultora do seu lugar central O termo
sub-desenvolvimento não é neutro: ele revela, pelo prefixo “sub”, que a
formação periférica assim constituída tinha lugar numa divisão internacional do
trabalho capitalista, portanto hierarquizada , sem o que o próprio conceito não
faria sentido. Mas não é etapista tanto no sentido estalinista quanto
evolucionista.
A Crítica à Razão Dualista tenta apanhar esses caminhos cruzados: como
“crítica” ela pertence ao campo marxista, e como especificidade, ao campo
cepalino. Embora arroubos do tempo tenham inscrito nela invectivas contra os
cepalinos, eu já me penintenciei desses equívocos, a forma tosca de ajudar a
introduzir novos elementos na construção da especificidade da forma brasileira
do subdesenvolvimento. Uma espécie de dívida do vício à virtude.Ela é cepalina
e marxista no sentido de mostrar como a articulação das formas econômicas
subdesenvolvidas incluía a política, não como externalidade, mas como
estruturante: Furtado havia tratado disso quando interpretou a resolução da
crise de superprodução de café nos anos da grande crise de 30, mas depois
abandonou essa grande abertura, e o 18 de Brumário já havia ensinado aos
marxistas que a política não é externa aos movimentos de classe,isto é, a
classe se faz na luta de classes, mas eles também desaprenderam a lição.
Retomei essas duas perspectivas para tentar entender como e porque lideranças
como Vargas e suas criaturas, o PTB - Partido Trabalhista Brasileiro e o
Partido Social-Democrático, o lendário PSD, haviam presidido a industrialização
brasileira, arrancando especificamente de bases rurais: o moderno, a indústria,
alimentando-se do atrasado, a economia de subsistência.
Três pontos receberam atenção, para completar a forma específica do
subdesenvolvimento brasileiro. O primeiro deles dizia respeito à função da
agricultura de subsistência para a acumulação interna de capital. Aqui, a
Cepal, Prebisch e Furtado , haviam empacado com a tese do setor atrasado como
obstáculo ao desenvolvimento, tese aliás que esteve muito em moda na teorização
contemporânea, como a de Arthur Lewis sobre a formação do salário em condições
de excesso de mão-de-obra. Tal tese não encontrava sustentação histórica, posto
que a economia brasileira experimentou uma taxa secular de crescimento desde o
século XIX, que não encontra paralelo em qualquer outra economia capitalista no
mundo. E os estudos sobre o café mostraram que o modo inicial de sua
expansão utilizou a agricultura de subsistência dos colonos, intercalada com o
café, para prover-lhes o sustento , o que depois era incorporado pela
cultura do café. Benfeitorias como “acumulação primitiva”. Aliás, o próprio
Furtado , ao estudar as culturas de subsistência tanto no Nordeste quanto em
Minas, viu sua “função” na formação do fundo de acumulação e na expansão dos
mercados a partir de São Paulo.Sustentei, então, que a agricultura atrasada
financiava a agricultura moderna e a industrialização.
Aliás, o nascimento do moderno sistema bancário brasileiro, que teve em Minas
um de seus principais pontos de emergência, mostrava essa relação entre as
formas de subsistência e o setor mais avançado do capital, tema presente
em Marx n’As Guerras Civis na França. Apontei, então, que as culturas de
subsistência tanto ajudavam a baixar o custo de reprodução da força de trabalho
nas cidades, o que facilitava a acumulação de capital industrial, quanto
produzia um excedente não-reinvertível nela mesma, que se escoava para
financiar a acumulação urbana. Um trabalho de Francisco Sá Jr. , que apareceu à
mesma época, explorava esse insight para as específicas condições da
agricultura de subsistência do Nordeste.Consegui publicá-lo na Estudos Cebrap ,
mas nunca mais meu xará Chico voltou ao assunto, e o seu clássico estudo não
voltou a ser freqüentado. E Chico mesmo desapareceu, com sua figura de
andarilho quase Conselheiro, logo ele um carioca da gema, da velha cepa dos Sá,
desde Estácio, que foi colonizador antes de ser estação do melhor samba
carioca.
Esse conjunto de imbricações entre agricultura de subsistência, sistema
bancário, financiamento da acumulação industrial e barateamento da
reprodução da força de trabalho nas cidades constituía o fulcro do processo de
expansão capitalista, que havia deixado de ser percebido pela teorização
cepalino-furtadiana, em que pese seu elevado teor heurístico. Tive que entrar
em forte discordância com as teorias do atraso na agricultura como fator
impeditivo, com a do “inchaço” das cidades como marginalidade, com a da
incompatibilidade da legislação do salário-mínimo com a acumulação de capital,
o que não quer dizer que as considerasse fundamentos sólidos para a expansão
capitalista; ao contrário, sua debilidade residia e reside ainda
precisamente na má distribuição de renda que estrutura, que constituirá sério
empecilho para a futura acumulação.
Daí derivou uma explicação para o papel do “exército de reserva” nas cidades,
ocupado em atividades informais, que para a maior parte dos teóricos era apenas
consumidor de excedente ou simplesmente lumpen, e para mim fazia parte também
dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho
urbana. O caso da autoconstrução e dos mutirões passou a ser explicativo do
paradoxo de que os pobres, incluindo necessariamente os operários, são
proprietários de suas residências – se é que se pode chamar assim o horror das
favelas – com o que reduzem o custo monetário de sua própria reprodução.
Nada disso é uma adaptação darwinista às condições rurais e urbanas do processo
da expansão capitalista no Brasil, nem “estratégias de sobrevivência”, para uma
certa antropologia, mas basicamente as formas irresolutas da questão da terra e
do estatuto da força de trabalho, a subordinação da nova classe social urbana,
o proletariado, ao Estado, e o “transformismo” brasileiro, forma da
modernização conservadora, ou de uma revolução produtiva sem revolução burguesa.Ao
rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução
produtiva sem revolução burguesa era o caráter “produtivo” do atraso como
condômino da expansão capitalista.O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a
forma da exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia. Como disse
Walter Benjamin, os oprimidos sabem do que se trata.O subdesenvolvimento
finalmente é a exceção sobre os oprimidos: o mutirão é a autoconstrução como
exceção da cidade, o trabalho informal como exceção da mercadoria, o
patrimonialismo como exceção da concorrência entre os capitais, a coerção
estatal como exceção da acumulação privada, keynesianismo avant la lettre.De
resto, esta última característica também está presente nos “capitalismos
tardios” . O caráter internacional do subdesenvolvimento, na exceção, se
reafirma com a coerção estatal, utilizada não apenas nos “capitalismos tardios”
mas de forma reiterada e estruturante no pós-depressão de Trinta.
A singularidade do subdesenvolvimento poderia ser resolvida
não-evolucionisticamente a partir de suas próprias contradições, à condição que
a vontade das classes soubesse aproveitar a “riqueza da iniquidade” de ser
periferia.A inserção na divisão internacional do trabalho capitalista,
reiterado por cada ciclo de modernização, propiciaria os meios técnicos
modernos, capazes de fazer “queimar etapas”, como os períodos Vargas e
Kubistchek mostraram.O crescimento da organização dos trabalhadores poderia
levar à liquidação da alta exploração propiciada pelo custo rebaixado da força
de trabalho. A reforma agrária poderia liquidar tanto com a fonte fornecedora
do “exército de reserva” das cidades, quanto com o poder patrimonialista. Mas
faltou o outro lado, isto é, que o projeto emancipador fosse compartilhado pela
burguesia nacional, o que não se deu. Ao contrário, esta voltou as costas à
aliança com as classes subordinadas, ela mesma já bastante enfraquecida
pela invasão de seu reduto de poder de classe pela crescente
internacionalização da propriedade industrial, sobretudo nos ramos
novíssimos. O golpe de estado de 1964, contemporâneo dos outros na
maioria dos paises latino-americanos, derrotou a possibilidade aberta.
A longa ditadura militar de 1964 a 1984 prosseguiu, agora nitidamente, com a
“via prussiana”: fortíssima repressão política, mão de ferro sobre os
sindicatos, coerção estatal no mais alto grau, aumentando o grau de presença de
empresas estatais numa proporção que nenhum nacionalista do período anterior
havia sonhado, abertura ao capital estrangeiro, industrialização a “marcha
forçada” – a expressão é de Antonio Barros de Castro - , e nenhum esforço para
liquidar com o patrimonialismo nem resolver o agudo problema do financiamento
interno da expansão do capital, que já havia se mostrado como o “calcanhar de
Aquiles” da anterior configuração de forças. O endividamento externo apareceu
então como a “solução” e por esse lado abriu as portas à financeirização da
economia e das contas do Estado brasileiro, que ficou patente no último governo
militar da ditadura, sob o mesmo czar das finanças que havia imperado no
período do “milagre brasileiro” que, talvez por ter Antonio no nome fosse
considerado milagreiro. Revelou-se um enorme farsante.
Sob o signo de Darwin: O
Ornitorrinco
Como é o ornitorrinco? Altamente
urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo
pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da
Segunda Revolução industrial completo, avançando, tatibitate, pela terceira
revolução, a molecular-digital ou informática.Uma estrutura de serviços muito
diversificada numa ponta, quando ligados aos estratos de altas rendas, a rigor,
mais ostensivamente perdulário que sofisticado; noutra, extremamente primitivo,
ligado exatamente ao consumo dos estratos pobres . Um sistema financeiro ainda
atrofiado, mas que, justamente pela financeirização e elevação da dívida
interna, acapara uma alta parte do PIB, cerca de 9% em 1998, quando economias
que são o centro financeiro do capitalismo globalizado alcançam apenas 4%
(USA), 6% (UK), 4% (RFA), 4,2% (FR) . Em termos da PEA ocupada, fraca e
declinante participação da PEA rural , força de trabalho industrial que chegou
ao auge na década de setenta do século passado, mas decrescente também, e
explosão continuada do emprego nos serviços.

Mas esta é a descrição de um
animal cuja “evolução” seguiu todos os passos da família! Como primata ele já é
quase homo sapiens! Parece dispor de “consciência”, pois se democratizou há já
quase três décadas. Falta-lhe, ainda, produzir conhecimento, ciência e técnica:
basicamente segue copiando , mas a decifração do genoma da xylella
fastidiosa mostra que pode não estar muito longe de certos avanços
fundamentais no campo da biogenética; espera-se apenas que não resolva
autoclonar-se, perpetuando o ornitorrinco. Onde é que está falhando a
“evolução” ? Na circulação sanguínea: a alta proporção da dívida externa sobre
o PIB demonstra que sem o dinheiro externo, a economia não se move. É um
adiantamento formidável: em 2001 o total da dívida externa sobre o PIB alcançou
alarmantes 41% e o mero serviço dela, juros sobre o PIB, 9,1 % . Há poucas
economias capitalistas assim; talvez os Estados Unidos acusem uma proporção tão
grande, com uma diferença radical: o sangue, o dólar, que circula
internacionalmente e volta ao USA é seu próprio sangue, já que é o país
emissor. Desse ponto de vista, a “evolução” regrediu: não se trata mais do
subdesenvolvimento, mas de algo parecido apenas com a situação pré-crise de 30,
quando o serviço da dívida , vale dizer, o pagamento dos juros mais as
amortizações do principal, comiam toda a receita de exportação ! Mas há
uma diferença fundamental: se no pré-30 as exportações de café eram toda a
economia brasileira, agora se trata de uma economia industrial, voltando-se, no
entanto, à mesma situação de subordinação financeira. Essa
dependência financeira externa cria, também, uma dívida financeira interna
igualmente espantosa, como a política capaz de enxugar a liquidez interna
produzida exatamente pelo ingresso de capitais especulativos. Mas é também um
adiantamento sobre a produção futura, de modo que somando-se dívida interna e
externa chega-se à conclusão de que para produzir um PIB anual é preciso
endividar-se na mesma proporção. Esta é a reiteração da financeirização da
economia.
No passado, no subdesenvolvimento, o “informal” poderia ser uma situação
passageira, a transição para a formalização completa das relações salariais, o
que chegou a mostrar-se nos últimos anos da década de setenta ; na minha
própria interpretação, tratava-se de uma forma que combinava uma acumulação
insuficiente com o privilegiamento da acumulação propriamente industrial.
Em termos teóricos, tratava-se de uma forma aquém do valor, isto é,
utilizava-se a própria mão-de-obra criada pelo movimento em direção às cidades
– e não de uma reserva pré-capitalista – para prover de serviços as cidades que
se industrializavam.
Avassalada pela terceira revolução industrial, ou molecular-digital, em
combinação com o movimento da mundialização do capital, a produtividade do
trabalho dá um salto mortal em direção à plenitude do trabalho abstrato. Em sua
dupla constituição, as formas concretas e a “essência” abstrata, o consumo das
forças de trabalho vivas encontrava obstáculos , a porosidade entre o tempo de
trabalho total e o tempo de trabalho da produção. Todo o crescimento da
produtividade do trabalho é a luta do capital para encurtar a distância entre
essas duas grandezas. Teoricamente, trata-se de transformar todo o tempo de trabalho
em trabalho não-pago; parece coisa de feitiçaria, e é o fetiche em sua máxima
expressão. Aqui, quase se fundem mais-valia absoluta e relativa: absoluta
porque o capital usa o trabalhador quando necessita dele, relativa porque isso
é possível somente devido à enorme produtividade. A contradição: a jornada da
mais-valia relativa deveria ser de diminuição do trabalho não-pago, mas é o seu
contrário.Então, graças à produtividade do trabalho, desaparecem os tempos de
não-trabalho: todo o tempo de trabalho é tempo de produção.Os serviços são o
lugar da divisão social do trabalho onde essa ruptura já aparece com clareza.
Cria-se uma espécie de “trabalho abstrato virtual”. As formas “exóticas”
desse trabalho abstrato virtual estão ali onde o trabalho aparece
como diversão, entretenimento, comunidade entre trabalhadores e consumidores:
nos shoppings centers. Mas é na informação que reside o trabalho abstrato
virtual. O trabalho mais pesado, mais primitivo, é também lugar do trabalho
abstrato virtual. Sua forma, uma fantasmagoria, um não-lugar, um não-tempo, que
é igual a tempo total. Pense-se em alguém em sua casa, acessando sua conta
bancária pelo seu computador, fazendo o trabalho que antes cabia a um bancário:
de que trabalho se trata ? Por isso, conceitos como formal e informal já não
têm força explicativa.O subdesenvolvimento pareceria ser uma evolução às
avessas: as classes dominantes, inseridas numa divisão do trabalho que opunha
produtores de matérias-primas a produtores de bens de capital, optavam por uma
forma da divisão de trabalho interna que preservasse a dominação: “consciência”
e não acaso.Ficava aberta a porta da transformação.
Hoje, o ornitorrinco perdeu a capacidade de escolha, de “seleção”, e por isso é
uma evolução truncada: como sugere a literatura da economia da tecnologia, o
progresso técnico é incremental; tal literatura é evolucionista,
neoschumpeteriana. Sendo incremental, ele depende fundamentalmente da
acumulação científico-tecnológica anterior. Enquanto o progresso técnico da
Segunda Revolução Industrial permitia saltar à frente, operando por rupturas
sem prévia acumulação técnico-científica, por se tratar de conhecimento difuso
e universal, o novo conhecimento técnico-científico está trancado nas patentes,
e não está disponível nas prateleiras do supermercado das inovações.E ele é
descartável, efêmero, como sugere Derrida, apud Laymert Garcia dos
Santos. Essa combinação de descartabilidade, efemeridade e progresso
incremental corta o passo às economias e sociedades que permanecem na rabeira
do conhecimento técnico-científico.Assim, a decifração do genoma da xilella
fastidiosa tem tudo para ser apenas um ornamento, a exibição orgulhosa da
capacidade dos pesquisadores brasileiros, de um nicho muito especial, mas não a
regra da produção do conhecimento.
A revolução molecular-digital anula a fronteira entre ciência e tecnologia: as
duas são trabalhadas agora num mesmo processo, numa mesma unidade
teórico-metodológica.Faz-se ciência fazendo tecnologia e vice-versa. Isto
implica em que não há produtos tecnológicos disponíveis , à parte, que possam
ser utilizados sem a ciência que os produziu. E o inverso: não se pode fazer
conhecimento científico sem a tecnologia adequada: a fabricação das bombas
atômica e de hidrogênio e as correspondentes produções de energia
nuclear- a de fusão ainda não lograda completamente - já indicavam essa
anulação, essa ultrapassagem. A revolução molecular-digital deleta – para usar
um termo informático – definitivamente essa barreira. O que sobra como produtos
tecnológicos são apenas bens de consumo.
Do ponto de vista da acumulação de capital, isto tem fundas conseqüências.A
primeira e mais óbvia é que os paises ou sistemas capitalistas subnacionais
periféricos podem apenas copiar o descartável, mas não copiar a matriz da
unidade técnico-científica.Uma espécie de eterna corrida contra o relógio.A
segunda, menos óbvia, é que a acumulação que se realiza em termos de cópia do
descartável, também entra em obsolescência acelerada, e nada sobra dela, ao
contrário da acumulação baseada na Segunda Revolução Industrial.Isto exige um
esforço de investimento sempre além do limite das forças internas de
acumulação, o que reitera os mecanismos de dependência financeira externa.Mas o
resultado fica sempre aquém do esforço: as taxas de acumulação, medidas pelo
coeficiente da inversão sobre o PIB, são declinantes, e declinantes também as
taxas de crescimento . Em termos bastante utilizados pelos cepalinos, a relação
produto-capital se deteriora: para obter cada vez menos produto, faz-se necessário
cada vez mais capital. E a contradição se agudiza porque a mundialização
introduz aumento da produtividade do trabalho sem acumulação de capital,
justamente pelo caráter divisível da forma técnica molecular-digital, do que
resulta a permanência da má distribuição da renda: exemplificando mais uma vez,
os vendedores de refrigerantes às portas dos estádios viram sua produtividade
aumentada graças ao just in time dos fabricantes e distribuidores de bebidas,
mas para realizar o valor de tais mercadorias, a forma do trabalho dos
vendedores é a mais primitiva. Combinam-se, pois, acumulação molecular-digital
com o puro uso da força de trabalho.
A superação da descartabilidade/efemeridade imporia um esforço descomunal de
pesquisa científico-tecnológica, aumentando-se o coeficiente de P&D ou
C&T sobre o PIB em algumas vezes, para saltar à frente da produção
científico-tecnológica. Ainda segundo Carlos Fernandez da Silveira – o
responsável pelo ornitorrinco – o coeficiente brasileiro para 1997 era
de meros 1,5%.A
acumulação de capital para realizar um salto dessas proporções
significaria elevar muito o coeficiente de inversão sobre o PIB em período
longo ,a partir da base atual, que era de quase 18% em 1999, e sobretudo mudar
o mix da inversão, com maior proporção de C&D. Em alguns períodos da
história, diversos subsistemas econômicos nacionais realizaram tal façanha, às
custas de uma enorme repressão política, de uma economia de monge franciscano,
com total irrelevância da produção de bens de consumo. Foi o caso japonês, por
exemplo, que de tanto sua população acostumar-se a poupar, o Japão dispõe hoje
de uma enorme poupança que não se transforma em investimento;mesmo o consumo de
todos os gadgets eletrônicos – cuja produção já foi deslocada até para a China
– não consegue gastar a renda dos nipões ; o segundo foi o caso da União
Soviética, em que a produção de bens de consumo foi totalmente desprezada,
gerando a incapacidade da agricultura soviética que, nos últimos anos do regime
socialista , já significava fome. No caso soviético, a forma técnica da
acumulação de capital da Segunda Revolução Industrial permitiu o extraordinário
avanço ocorrido mas, por sua indivisibilidade, não permitiu sua utilização na
produção de bens-salário: equipamento para siderurgia não produz pães. O
paradoxo é que a acumulação de capital nas formas da Segunda Revolução
Industrial podia avançar utilizando o conhecimento técnico-científico
disponível, mas elas – as formas – eram indivisíveis; na revolução molecular-digital,
as formas são divisíveis, mas o conhecimento técnico-científico é
indivisível na unidade C & D.
Não parece ser o caso do Brasil, onde nos melhores anos kubistchekianos
chegou-se aos 22% de investimento sobre o PIB; a ditadura militar, para elevar
o coeficiente de investimento se financiou externamente gerando a enorme dívida
, que se transformou em fator de coerção do crescimento e de subordinação
financeira internacional.Como a acumulação incremental tem que realizar-se
permanentemente, não havendo um day after quando já não se precisaria de altas
taxas de investimento, não parece algo à mão para um país que acaba de criar um
programa de Fome Zero pelas mui prosaicas e terríveis razões de uma
distribuição de renda incomensuravelmente desigualitária.
Aterrisando na periferia, o efeito desse espantoso aumento da produtividade do
trabalho, desse trabalho abstrato virtual, não pode ser menos que devastador.
Aproveitando a enorme reserva criada pela própria industrialização, como
“informal”, a acumulação molecular-digital não necessitou desfazer
drasticamente as formas concreto-abstratas do trabalho, senão em seus reduzidos
nichos fordistas.Realiza, então, o trabalho de extração de mais-valia sem
nenhuma resistência, sem nenhuma das porosidades que entravavam a completa
exploração.
A tendência à formalização das relações salariais estancou nos anos oitenta, e
expandiu-se o que ainda é impropriamente chamado de trabalho
informal.Entroncando com a chamada reestruturação produtiva, assiste-se ao que
Castel chama a “desfiliação”, isto é, à desconstrução da relação
salarial. Que se dá em todos os níveis e setores. Terceirização,
precarização, flexibilização, desemprego às taxas de quase 30% na Grande São
Paulo e 25% em Salvador, e não tão contraditoriamente como se pensa, ocupação –
e não mais emprego –: grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa
e lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares – os leitos
das tradicionais e bancárias e banqueiras ruas Quinze e Boa Vista em São Paulo
transformaram-se em tapetes de quinquilharias -, o entorno do formoso e
iluminadíssimo Teatro Municipal de São Paulo – não mais formoso que o Municipal
do Rio, anote-se – exibe o teatro de uma sociedade derrotada, um bazar
multiforme onde a cópia pobre do bem de consumo de alto nível é
horrivelmente kitsch, milhares de vendedores de coca-cola, guaraná,
cerveja, água mineral, nas portas dos estádios duas vezes por semana.Pasmemos
teoricamente: trata-se de trabalho abstrato virtual. Políticas piedosas tentam
“treinar” e “qualificar” essa mão-de-obra, num “trabalho de Sísifo”, jogando
água em cesto, acreditando que o velho e bom trabalho com carteira voltará
quando o ciclo de negócios se reativar. . Será o contrário: quando se reativar,
e isto ocorrerá de forma intermitente, sem sustentabilidade previsível, então
em cada novo período de crescimento o trabalho abstrato virtual se instalará
mais fundamente.
O ornitorrinco é uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias, mais
mesmo que as economias mais pobres da África que, a rigor, não podem ser
tomadas como economias capitalistas, apesar de ter experimentado as taxas de
crescimento mais expressivas em período longo - sou tentado a dizer com a
elegância francesa, et pour cause . As determinações mais evidentes dessa
contradição residem na combinação do estatuto rebaixado da força de trabalho
com dependência externa. A primeira sustentou uma forma de acumulação que
financiou a expansão, isto é, o subdesenvolvimento, conforme interpretado na
Crítica à Razão Dualista, mas combinando-se com a segunda produziu um mercado
interno apto apenas a consumir cópias, dando como resultado uma reiteração
não-virtuosa.
Com a revolução molecular-digital como forma técnica principal da acumulação de
capital, o fatiamento digital do mercado pode prosseguir sem que dê lugar a
crises de realização, derivadas de uma superacumulação; estas ocorrem apenas
quando a espantosa concentração de renda se desacelera; do ponto de vista do
consumo popular, apesar das críticas bem intencionadas, não se chega a crises
de realização: o fatiamento digital é capaz de descer aos infernos da má
distribuição da renda.Crises de superacumulação podem ocorrer tão somente como
problemas da concorrência oligopolística , como hoje com as telecomunicações,
depois das grandes privatizações.Para ganhar o filet mignon das
telecomunicações, as gigantes mundiais da telecomunicação lançaram-se a uma
concorrência predatória, instalando sistemas de telefonia móvel e rebaixando o
preço dos telefones celulares – e aumentando as importações – mas logo se
depararam com o obstáculo da distribuição da renda das camadas mais pobres.
Todas as formas dos produtos da revolução molecular-digital podem chegar até os
estratos mais baixos de renda, como bens de consumo duráveis: as florestas de
antenas, inclusive parabólicas, sobre os barracos das favelas é sua melhor
ilustração.Falta dizer, ao modo frankfurtiano, que essa capacidade de levar o
consumo até os setores mais pobres da sociedade, é ela mesma o mais poderoso narcótico
social. Celso Furtado já havia advertido para isso, mas a meu ver pôs o acento
na importação de padrões de consumo predatórios, ao invés de ver na
distribuição de renda o motor determinante. Seu último pequeno grande
livro corrigiu para melhor sua advertência.
A organização dos trabalhadores poderia operar a transformação da estrutura
desigualitária da distribuição da renda, tal como ocorreu nos subsistemas
nacionais europeus do Welfare State. A expansão das relações assalariadas seria
o vetor por onde ganharia materialidade a organização, o que de fato ocorreu
precariamente até os anos setenta. Já a crise do golpe militar de 1964
anunciava que as organizações de trabalhadores já não eram simples “correias de
transmissão” da dominação chamada “populista” pela literatura
sociológica-política. A eclosão dos grandes movimentos sindicais nos anos
setenta, de que resultou , em grande medida, o Partido dos Trabalhadores,
parecia indicar um caminho “europeu” ; medindo-se as proporções do
salário e do lucro na renda nacional, a divisão funcional da
renda, anotava-se uma melhoria na distribuição, e a vocação de
universalizador das demandas do mundo do trabalho que passou a ser exercida
pelos sindicatos “autênticos” – ABC, petroleiros, bancários – parecia ter tudo
para expandir a relação salarial e seus correlatos, na Seguridade Social e nas
formas do salário indireto.As empresas estatais adiantaram-se sob esse aspecto
– importa não esquecer que os petroleiros eram uma categoria também de
“funcionários públicos” inserida na produção de mercadorias – de que resultaram
os grandes fundos de pensão.

Esse movimento deteve-se nos anos oitenta e entrou em franca regressão a partir
dali.As forças do trabalho já não têm “força” social, erosionada pela
reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual e “força” política,
posto que dificilmente tais mudanças na base técnico-material da produção
deixariam de repercutir na formação da classe. Embora na linha thompsoniana
trabalhador não seja apenas um lugar na produção, inegavelmente há que
concordar com Perry Anderson: sem esse lugar, ninguém é trabalhador, operário.
A representação de classe perdeu sua base e o poder político a partir dela
estiolou-se. Nas específicas condições brasileiras, tal perda tem um enorme
significado: não está à vista a ruptura com a longa “via passiva” brasileira,
mas já não é mais o subdesenvolvimento. A estrutura de classes também foi
truncada ou modificada: as capas mais altas do antigo proletariado converteram-se,
em parte, no que Robert Reich chamou de “analistas simbólicos” : são
administradores de fundos de previdência complementar, oriundos das antigas
empresas estatais , dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funcionários do
Banco do Brasil, ainda estatal; fazem parte de conselhos de administração, como
o do BNDES, a título de representantes dos trabalhadores. A última floração do
Welfare brasileiro, que se organizou basicamente nas estatais, produziu tais
fundos, e a Constituição de 1988 instituiu o FAT –Fundo de Amparo ao
Trabalhador que é o maior financiador de capital de longo prazo no país,
justamente operando no BNDES. Tal simulacro produziu o que Robert Kurz
chamou de “sujeitos monetários” : trabalhadores que ascendem a essas
funções estão preocupados com a rentabilidade de tais fundos, que
ao mesmo tempo financiam a reestruturação produtiva que produz desemprego.
Sindicatos de trabalhadores do setor privado também já estão organizando seus
próprios fundos de previdência complementar, na esteira daqueles das estatais.
Ironicamente, foi assim que a Força Sindical conquistou o sindicato da então
Siderúrgica Nacional, que era ligado à CUT, formando um “clube de investimento”
para financiar a privatização da empresa; ninguém perguntou depois o que
aconteceu com as ações dos trabalhadores, que ou viraram pó ou foram
açambarcadas pelo grupo Vicunha, que controla a Siderúrgica.É isso que
explica recentes convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB,o aparente
paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o:
não se trata de equívoco, mas de uma verdadeira nova classe social, que se
estrutura sobre , de um lado, técnicos e intelectuais doublés de
banqueiros, núcleo duro do PSDB , e trabalhadores transformados em operadores
de fundos de previdência, núcleo duro do PT . A identidade dos dois casos
reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do “mapa da
mina”.
A questão da formação dessa nova classe no capitalismo globalizado na periferia
– embora Reich teorize principalmente sobre os fenômenos no centro dinâmico do
sistema – deve ser mais perscrutada. De fato, tanto há um novo lugar da nova
classe no sistema, sobretudo no sistema financeiro e suas mediações estatais, o
que satisfaz um critério de classe de extração marxista, quanto há uma nova
“experiência” de classe, nos termos de Thompson: o caso da comemoração do
aniversário de ex-tesoureiro da CUT mostra que essa “experiência” lhe é
exclusiva, e não pode ser estendida aos trabalhadores em geral; de fato já não são
mais trabalhadores. O aniversário seria os novos pubs , lugar de frequentação
da nova classe. Se nessa frequentação ela se mistura com as burguesias e seus
executivos, isto não deve levar a confundi-los: seu “lugar na produção” é o
controle do acesso ao fundo público, que não é o “lugar” da burguesia.Em termos
gramscianos também a nova classe satisfaz as exigências teóricas: ela se forma
exatamente num novo consenso sobre Estado e mercado, e por último, é a
luta de classes que faz a classe: vale dizer, seu movimento se dá na
apropriação de parcelas importantes do fundo público, e sua especificidade se
marca exatamente aqui: não se trata de apropriar os lucros do setor privado,
mas o lugar onde se forma parte desse lucro, vale dizer o fundo público. Uma démarche
de inspiração weberiana veria a nova classe como se formando numa “ação com
sentido racional”, que é , em última análise, a forma de sua
consciência.
Olhando de outro ângulo, o ornitorrinco apresenta a peculiaridade de que os
principais fundos de inversão e investimento são propriedades de trabalhadores.
É o socialismo, exclamaria alguém que ressuscitasse das primeiras décadas do
século XX. Mas ao contrário das esperanças de Juarez Guimarães, o ornitorrinco
está privado do momento ético-político , pela combinação da permanente
aceleração da estrutura material de produção e “propriedade” dos fundos de
acumulação. A hegemonia, na fórmula gramsciana, elabora-se na
superestrutura, e nas suas específicas condições, o ornitorrinco não tem “consciência”,
mas apenas replicação superestrutural: seu teórico antecipatório foi Ridley
Scott, com Blade Runner.
O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido,
e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há
possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases
internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma
ruptura desse porte.Restam apenas as “acumulações primitivas”, tal como as
privatizações propiciaram: mas agora com o domínio do capital financeiro, elas
são apenas transferências de patrimônio, não são , propriamente falando,
“acumulação”. O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voragem da
financeirização, uma espécie de “buraco negro”: agora será a previdência
social, mas isso o privará exatamente de redistribuir a renda e criar um novo
mercado que sentaria as bases para a acumulação digital-molecular.O
ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade
desigualitária sem remissão. Vivam Marx e Darwin: a periferia capitalista
finalmente os uniu. Marx que esperava tanto a aprovação de Darwin, que não teve
tempo para ler O Capital. Não foi aqui , nas Galápagos, que Darwin teve o seu
“estalo de Vieira” ?

Nenhum comentário: