terça-feira, 10 de abril de 2012

Livro de Galeano “Os filhos dos dias” (entrevista)

Eduardo
Galeano lança novo livro e afirma: “Fomos treinados para ter medo de tudo”

Postado em: 3 abr 2012 às 9:40 América Latina
A cada dia, nasce uma história em “Os filhos dos dias”,
novo livro do escritor uruguaio. São 366 textos que, segundo Galeano, são
histórias de invisíveis que merecem ser contadas. Confira a entrevista



















Publicado
por Brasil de Fato,
original de La Republica
Por que este título: Os filhos dos dias?
Segundo os maias, nós somos filhos dos dias, ou seja, o
tempo é que estabelece o espaço. O tempo é nosso pai e nossa mãe e, como somos
filhos dos dias, o mais natural é que a cada dia nasça uma história. Somos
feitos de átomos, mas também de histórias.
Dentro dessas histórias há muitas vinculadas à nossa vida
cotidiana. Você assinala: “vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é
que projeta que existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se
refere?
Muitos políticos no mundo inteiro, não é algo que passa
somente em nosso país, exploram um tipo de histeria coletiva a respeito do tema
da insegurança. Te ensinam a ver o próximo como uma ameaça e te proíbem de
vê-lo como uma promessa, ou seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda
por aí, pode roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir para você, raramente
oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa forma parte de uma
ditadura universal do medo. Fomos treinados para ter medo de tudo e de todos e
este é o álibi que necessita a estrutura militar do mundo. Este é um mundo que
destina metade de seus recursos à arte de matar o próximo. Os gastos militares,
que são o nome artístico dos gastos criminais, necessitam de um álibi. As armas
necessitam da guerra, como os abrigos necessitam do inverno.
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Quando fala dos medos, você joga com essa palavra para
assim mencionar os meios e tem uma história que é “os meios de comunicação”. A
que lugar você atribui aos meios em nossos medos?
Às vezes, os meios atuam como medos de comunicação, então,
se convertem em medos de incomunicação. Isto não é verdade para todos, mas sim
para alguns meios que no mundo inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva
desatada com o tema da insegurança. Mentem, porque a insegurança não se reduz à
insegurança que se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a
insegurança no trabalho, que é a mais grave de todas e da qual nunca falam os políticos
que exploram o tema da insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho.
Todos nos perguntamos: e amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de
trabalho onde estive hoje? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de perder o trabalho ou de não encontrá-lo é
a fonte de insegurança mais importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de
pessoas que matam os carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na
realidade são atos criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de
dirigir, tem permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que
nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade
incurável.
Aparecem as histórias dos desaparecidos, mas lhe menciono
uma em particular, chamada Plano Condor, onde a história que se conta pertence
a Macarena Gelma. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
Comecei conhecendo ao pai de Macarena (Marcelo) e ao avô
Juan (Gelman) com quem trabalhei junto na revista Crisis em Buenos Aires e que
é meu amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade, ou melhor, de
irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da Argentina para continuar vivo,
naqueles dias que se viviam em Buenos Aires, onde tinha que ir ou esconder-se.
Então, eu recebia com muita frequência a seu filho Marcelo e me fiz de pai por
algum tempo, depois o mataram, e a outra história é bastante conhecida.
A mulher de Marcelo (María Claudia) foi sequestrada na
Argentina. Eram acusados do crime de protestar, delitos de dignidade que tem a
ver com o direito estudantil ao protesto. Esses eram os crimes dos meninos,
como eles foram assassinados muito cedo. A María Claudia assassinaram no
Uruguai, onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o melhor em
funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha dificuldades graves. O mercado da
morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as ditaduras trocavam
favores. Mandaram María Claudia grávida para o Uruguai e aqui os militares
uruguaios se encarregaram do trabalho. Esperaram ela dar à luz, ela passou seus
últimos dias, ou talvez seus últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar
(SID) onde descobriu-se a placa em memória de María Claudia e todos os que
estiveram ali.
Me impressionou o contraste pela beleza exterior do palácio
e os horrores que escondia. Depois de dar à luz, a mataram e entregaram seu
filho(a) a um policial, troca de favores. A partir de uma busca complicada de
Juan (Gelman) e seus amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se Macarena
Gelman. Nós tornamos muito amigos e uma vez jantando em casa, me contou essa
história que é parte das histórias de “Os filhos dos dias” (livro). É uma
história muito íntima, muito particular e lhe pedi autorização para publicá-la.
É uma história rara, mas reveladora. Conta que quando ainda não sabia quem era
e vivia em outra casa, com outro nome, nesse período sofria de insônia
contínua, que não a deixavam dormir a noite porque a perseguia sempre o mesmo
pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito armados que a buscavam no
dormitório onde estava dormindo, debaixo da cama, no guarda-roupa e em todas as
partes e ela acordava gritando e angustiadíssima.
Durante muitíssimo tempo, toda sua infância teve esse
pesadelo que a perseguia e ela não sabia o por quê, de onde vinha. Até que
conheceu sua verdadeira história e soube que estava sonhando os pesadelos que
sua mãe havia vivido enquanto a formava no ventre. A mãe, uma estudante de
apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros senhores armados até os
dentes que a encontraram e a mandaram para morrer no Uruguai. Macarena estava
no ventre dessa mulher acoada e perseguida. Desde o ventre padecia a
perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e se converteu em seus
próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia vivido. É uma história que
parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos horrores, e também de outras
continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Por
que?
Também há muitas histórias de mulheres em meus livros
anteriores, como Espelhos e Bocas do Tempo. Há muitas histórias dos invisíveis,
e as mulheres ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios,
das culturas ignoradas, das pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas
porque têm algo para dizer e vale a pena escutar.
Neste último livro (Os filhos dos dias) há uma história que
me impressionou muito, e que não havia escrito até agora, a de Juana Azurduy.
Juana foi uma heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do Cerro
de Potosí que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era a chefe de um grupo
guerrilheiro que recuperou Potosí das mãos espanholas.
Depois seguiu guerreando pela independência, perdeu seus 7
filhos e seu marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum
e morreu na pobreza mais pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um
título militar, foram as forças independentistas as que lhe deram um título que
dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de muito tempo para que uma
presidenta argentina (Cristina Fernández) a outorgasse o título de General por
sua feminina valentia.
Há muitas histórias dos povos originários, da luta pelos
recursos naturais, e o rol das multinacionais. Em particular, uma história
dedicada à selva amazônica.
Essa história sobre a Amazônia recorda que a Texaco, empresa
petroleira que derramou veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da solva
equatoriana. Foi a juízo, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às
pessoas desse lugar não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco contava com
centenas de advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda
não se colocou em prática, porque há muitas maneiras de se apelar, e de tirar a
bola para fora e para isso não faltam doutores.
No livro tem um olhar crítico sobre os governos
progressistas que ainda não descriminalizaram o aborto.
O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias
concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não são somente latino-americanas, você
percorre o mundo.
Há muitas histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por
exemplo, foi a primeira mulher que firmou seus escritos nas tábuas de barro.
Ocorreu há quatro mil anos e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é
desconhecida. E vale a pena contar que essa história existiu.
A respeito da crise internacional , você resgata o que
ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados na Espanha.
Esta crise provém de um círculo muito pequeno de banqueiros
onipotentes. Me ocorreu para esta história um título sinistro que foi “adote um
banqueiro”. Os responsáveis da crise são os que mais têm se queixado e os que
mais dinheiro tem recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o planeta.
Todo esse dinheiro que destinou aos que causaram o pior desastre na história da
humanidade seria suficiente para dar comida aos famintos do mundo com sobra,
inclusive.
Você acha uma contradição a existência do movimento dos
indignados e que, ao mesmo tempo, tenha ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos indignados é o que de mais lindo ocorreu no
mundo nos últimos tempos. Creio que o melhor da vida é sua capacidade de
surpresa. O melhor dos meus dias é o que ainda não vivi. Cada vez que uma
cigana me cerca para ler a minha mão a peço por favor que a pague, mas que não
leia. Não quero que me digam o que vai me ocorrer, o melhor que a vida tem é a
curiosidade e a curiosidade nasce da ignorância do destino. A explosão dos
indignados começou na Espanha, e depois se estendeu em outras partes. É uma boa
notícia a capacidade de indignação. Bem dizia meu mestre brasileiro Darcy
Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo se divide entre os
indignos e os indignados e que tem-se que tomar partido, há que se eleger.
Pensei muito nele quando surgiu este movimento. Jovens que
perderam seus empregos e suas casas por responsabilidade desses malabarismos
financeiros que acabaram despojando os inocentes de seus bens. Eles não foram
os que pegaram empréstimos impossíveis, não foram eles os culpados da bolha
financeira e deste disparate que aconteceu na Espanha de construir e construir
e agora está cheia de moradias desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a eleição, é verdade. A direita ganhou as
eleições, e terá que lutar para que isso mude. Isto que aconteceu na Espanha
também fala do desprestígio de forças de esquerda que entram na vida política
prometendo mudanças radicais, e depois terminam repetindo a história, ao invés
de mudá-la. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, se sentem desapontadas e
abandonam a política.

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